Encaixada entre as voltas do Zêzere, que por estas bandas se contorce para correr no vale destas serranias, encontrei, quase por acaso, uma pequena mas encantadora aldeia. Confesso que ia um bocado “desconfiado”, pois não tinha visto grandes imagens da aldeia, apenas conhecia a sua praia fluvial [ver aqui].
A verdade é que quem chega de fora e circula nas estradas municipais que servem a aldeia, apenas repara numa ou noutra construção mais apelativa mas, no seu interior, Janeiro de Cima guarda uma verdadeira jóia.
Janeiro de Cima possui um núcleo central de casas típicas com características muito próprias e de grande riqueza patrimonial e arquitectónica. Por isso, há que largar o carro e metermo-nos a calcorrear as estreitas ruas do núcleo central da aldeia. Vai ver que vai ficar maravilhado e, quando terminar a volta pelo centro de Janeiro de Cima, estará deslumbrado com a aldeia e a visita vai saber-lhe a pouco. Eu não resisti e fui dar uma segunda volta…
Localizada na margem esquerda do rio Zêzere, Janeiro de Cima é uma pequena aldeia na extremidade do concelho do Fundão (Castelo Branco) e faz parte da rede das Aldeias do Xisto.
Janeiro de Cima é uma aldeia pitoresca, com um ambiente especial onde impera o sossego e onde se vive em comunhão com o rio Zêzere e com a natureza. Entre serras cobertas de uma vasta manta verde, a aldeia fica num fundo mesmo junto ao rio. Em tempos, nos seus campos férteis cultivava-se o linho, actividade que foi abandonada há mais de três dezenas de anos, mas que parece ganhar nova vida nos dias de hoje com novos projectos.
Esta bela aldeia de xisto brinda-nos a cada recanto com pormenores deliciosos. As suas ruas sinuosas e as suas pequenas casas de pedra fazem-nos viajar no tempo.
Nas paredes destas casas tradicionais dos séculos XVII e XVIII, entre o acastanhado do xisto, sobressai a alvura dos seixos rolados que vieram das margens do rio e que conferem um aspecto distinto as estas casas e à própria aldeia.
Como acontece em grande parte das aldeias, Janeiro de Cima desenvolve-se a partir da antiga igreja, a Igreja Velha, sendo dali que parte um conjunto labiríntico de ruas estreitas, pequenas ruelas e becos que constituem o interessantíssimo e muito próprio núcleo central da aldeia. Um cenário maravilhoso que deve ser explorado com tempo e tranquilidade, vagueando sem destino observando o entrelaçado das ruas e as suas casas.
Ao percorrer as sinuosas ruas do centro a aldeia vai encontrar a Casa das Tecedeiras e o seu tear gigante que visa prestar uma homenagem a esta actividade tradicional e secular. Na Casa das Tecedeiras, os teares outrora sustento de muitas famílias, continuam a dar cor e vida a esta aldeia, não deixando morrer esta nobre tradição. Neste espaço reinventa-se a tradição do linho criando peças mais modernas e actuais. A Casa das Tecedeiras funciona como centro interpretativo, dando a conhecer o ciclo do linho e possibilitando aos visitantes experimentar um tear antigo. Aqui poderá também adquirir algumas das excelentes peças produzidas pelas tecedeiras. Todas as artistas da Casa das Tecedeiras são habitantes locais com saberes ancestrais e que beneficiaram de formação em design têxtil. Hoje produzem uma larga variedade de artigos desde o vestuário a peças decorativas. Encontrou-se aqui uma importante forma de preservar a memória das artes tradicionais, mobilizar a população e rentabilizar as tradições da aldeia numa economia muito fragilizada e onde as oportunidades profissionais não abundam.
A Igreja Velha, também conhecida por Igreja de Nossa Senhora da Assunção, foi construída no século XVIII e fica no centro da aldeia, evidenciando no seu interior testemunhos de um templo mais primitivo, como é o caso das colunas de suporte do coro-alto, a pia de água-benta e algumas imagens. No século XX, quando esta igreja se tornou pequena para acolher os fiéis, foi construído um novo templo de maiores dimensões.
A aldeia possui ainda mais três locais de culto. A Capela de Nossa Senhora do Livramento, junto ao recinto de festas, já no limite da aldeia, aparenta ter sido reconstruída recentemente, mas é provável que seja um templo antigo. A capela do Divino Espírito Santo, já fora do perímetro da aldeia, é uma construção, provavelmente, do século XVI, bem como a imagem do orago. Também fora da aldeia, numa pequena elevação, fica a capela de São Sebastião, reconstruída já no século XX sobre um outro templo datado do século XVI. É aqui que se celebra a Festa do Bodo, uma festividade que reúne toda a comunidade. Esta capela está associada a uma lenda que nos conta que no século XVIII, a aldeia foi assolada por uma forte epidemia e a perda de vidas foi grande. O povo da aldeia ao ver tão grande desgraça decidiu recorrer a S. Sebastião (advogado das pestes, guerras e epidemias) pedindo a sua ajuda. Como não tinham a imagem do mártir, pediram-na à aldeia vizinha, Janeiro de Baixo. Mas as habitantes de Janeiro de Baixo, receando que a epidemia se alastrasse para o outro lado do rio, não permitiram que os habitantes de Janeiro de Cima fossem à sua aldeia buscar o Santo, tendo eles ido colocar o santo na margem esquerda do rio na manhã seguinte. Como o Santo afastou a peste, o povo de Janeiro de Cima cumpriu o que havia prometido: construíram uma capela e compraram uma imagem de São Sebastião, celebrando no dia 20 de Janeiro a sua festa. Desde essa data, neste dia, são oferecidos pão e vinho a quem se encontrar no local.
Um dos elementos mais simbólicos de Janeiro de Cima é a Barca, uma pequena embarcação baixa e de forma quase triangular, típica desta região, revelando a forte ligação que a aldeia sempre estabeleceu com o seu rio. Outrora, a Barca era o único meio para se efectuar a travessia de uma margem para outra do Zêzere. A travessia estava a cargo do barqueiro, pago por todos os que não dispunha deste meio de transporte e que o utilizavam para a passagem de pessoas, animais e mercadoria.
Era aqui, junto ao Zêzere, que se gritava “Ó da barca!”, quando se pretendia fazer a travessia do rio. Hoje a Barca foi recuperada e é possível fazer passeios rio acima.
Junto ao rio, a Roda de Janeiro é um monumento que evoca as antigas tradições da rega, demonstrando como os habitantes da aldeia aproveitavam o movimento das águas do rio para regar os terrenos de cultivo mais próximos.
Mesmo à entrada da aldeia, fica o Parque Fluvial de Janeiro de Cima, também conhecido como Parque da Lavandeira. O Parque Fluvial, que faz o aproveitamento de um dique, está inserido num local bucólico de grande beleza, sendo um local muito aprazível e airoso.
O Parque Fluvial de Janeiro de Cima é um espaço muito apetecível nos meses quentes de Verão, fazendo as delícias não só dos seus habitantes, mas também de visitantes que procuram um espaço agradável e onde se possam refrescar.
Esta zona de lazer e balnear não apresenta areia, mas sim um amplo relvado em frente ao rio. Para além de um café com esplanada, parque infantil, balneários, chuveiros e uma zona para piqueniques, este Parque Fluvial de Janeiro de Cima apresenta ainda um campo de futebol e uma zona de campismo (gratuito). Há ainda uma rampa de acesso ao rio para pessoas com mobilidade reduzida.
A aldeia que sabe bem receber quem por ali passa dispõe de um restaurante e, a pensar nos visitantes, existem já alguns alojamentos de turismo rural.
A aldeia de Janeiro de Cima é pois uma jóia rara que vive em sintonia com o rio e com a natureza. É um local onde pode encontrar serenidade e ar puro, um refúgio para a azáfama do dia-a-dia. É uma aldeia onde em cada esquina parece haver um local que nos encanta e surpreende. Um lugar onde as tradições e os saberes antigos renascem, mantendo viva a história da aldeia. Um lugar onde nos apetece sempre voltar.
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